As marcas do Bristol
- Paula Pereira

- 6 de fev.
- 4 min de leitura
Atualizado: 8 de fev.
Duas fora da lei tomando um capuccino no lobby do hotel cinco estrelas. Essa é a recordação que tenho do Hotel Bristol, no centro de Odessa. Logo pela manhã, eu e Liza combinamos de nos encontrar na cidade para dar uma volta. Fazia bastante frio, como toda manhã de fevereiro na Ucrânia. O impacto do vento gelado no rosto ao abrir a porta passou quase despercebido diante da empolgação de encontrar minha amiga. Saí na embalagem mais grossa que encontrei, acobertando também o sorriso. Ainda era pandemia.
Liza sempre caminhou bastante, e eu, sempre pouco. Não me recordo com certeza, mas é possível que eu tenha hesitado um pouco ao pensar em quão longe eu conseguiria ir em botas endurecidas e com o nariz querendo escorrer sob a máscara. Mas eu jamais negaria a oportunidade de fazer um tour pela cidade com ela que, inclusive, sabe o que eu gosto de ver (lojinhas de souvenir, mercadinhos e cafeterias). Aposto que Liza saberia andar pelas ruas de Odessa até de olhos vendados. Já eu, tentava memorizar o que vimos na última esquina. Eu havia chegado fazia dois meses, tudo ainda era novo.
Caminhamos muito e, entretida nas conversas sobre tantos assuntos, nem me dei conta de que todas as cafeterias e restaurantes estavam funcionando no modo “para viagem”. Por causa da pandemia, só era possível pedir o café e sair. Sentar, nem sonhando. Mas depois de duas horas naquele frio, o corpo começava a ter dificuldade em manter as extremidades aquecidas. Nada funcionava: manter as mãos com luvas nos bolsos, esfregá-las com força, cruzar os braços, ou assoprar um bafo quente entre elas. E meus pés então… talvez pulassem de alegria quando finalmente pudessem ficar parados. Era hora de sentar em algum lugar: na rua congelaríamos, em qualquer outro lugar social era proibido.
Apesar das restrições, eu já tinha ouvido falar sobre um estabelecimento ou outro que burlava as leis. Cheguei a ver um restaurante que funcionava na calada da noite, só no segundo andar, sob baixa iluminação e longe do controle das autoridades. Não tenho dúvidas de que outros faziam igual ou de forma até mais criativa. Eu e Liza chegamos a perguntar em um café ou outro onde não havia absolutamente ninguém, mas a resposta era sempre a mesma: “só pra viagem” - o que não resolvia nosso dilema.
Nosso encontro estava prestes a encerrar no frio, quando Liza teve a ideia de perguntar em um hotel. Não era “só” um hotel, era “o” hotel. Situado na Rua Italianskaya, o hotel Bristol é uma obra arquitetônica que captura o olhar de qualquer um que esteja simplesmente andando pela calçada. Eu já havia passado ali em frente algumas vezes; o hotel gritava “luxo” até no escuro, até nas noites mais longas de inverno. Talvez fosse isso que lhe dava ainda mais charme. Adentramos o hotel. Meu queixo caiu.
No centro do salão havia uma escadaria imperial de mármore que dava acesso ao segundo andar coberta por um tapete florido vintage e com pequenas estatuetas de anjos nos pilares ao lado. Enormes lustres pendiam do alto e iluminavam o salão inteiro num tom meio dourado. Sabe aquela sensação de “não pertencer ao lugar”? Eu me sentia assim a cada passo que dava, porém, estávamos muito confiantes: eu, certa do “não” que ouviríamos; e ela certa do “sim”.
Um atendente veio e Liza falou a verdade, que havíamos caminhado muito e queríamos apenas sentar em algum lugar para tomar um café: “Podemos tomar um café aqui no lobby?”. Sem hesitação nenhuma, a confirmação veio e logo estávamos pendurando nossas blusas para nos sentarmos sob aquelas lindas poltronas aveludadas em azul com dourado. Meu corpo inteiro pulou de alegria! Pedimos um cappuccino e tirei uns minutos para observar bem o hotel, compreendendo o luxo que eu “não teria condições de pagar” se fosse me hospedar ali. “Aliás, quanto será que custa um cappuccino aqui?”. Para minha surpresa, não custava mais do que o cappuccino em qualquer outro lugar.
Passamos mais uma hora sentadas ali no cantinho, conversando sobre tudo o que tínhamos vontade. Meus pés em festa, minhas mãos aquecidas enquanto tomava o cappuccino. Aquela manhã se tornou especial na memória. É bem provável que eu jamais entrasse naquele hotel “só para visitar”; no entanto, estava lá feliz e achando que, de alguma forma, eu e Liza éramos como duas fora da lei tomando nosso cappuccino inocente no saguão. Se houvesse alguma vistoria, a resposta seria: “Estamos hospedadas no hotel”. O hotel Bristol nos acolheu e em mim ficaram registradas as sensações de surpresa daquele lugar e de ousadia daquele momento. Isso aconteceu quatro anos atrás.
Na manhã no último sábado, acordei com a notícia enviada pelo meu esposo sobre os ataques com mísseis mais recentes realizados em Odessa: o hotel Bristol foi um dos alvos e os danos significativos. Nenhum hóspede ficou ferido, mas um funcionário foi atendido pelos socorristas e, por um tempo, o hotel não fará novas reservas até que se concluam as reformas necessárias. Me entristeci pensando no que aconteceu. As lembranças minhas com Liza serão sempre alegres, mas simultaneamente sinto o pesar de saber que, agora, haverá sempre essa uma cicatriz naquela rua da cidade. Um hotel lindíssimo, construído em 1899, alvo de guerra em pleno 2025. Não faz sentido.






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